Infância

Quando nasci um anjo torto não disse nada, nem que eu iria ser gauche na vida ou coisa parecida. O silencio foi meu primeiro registro. Mas trago comigo a convicção: toda criança ao nascer - como já nos revelou Baudelaire em “Os Dons das Fadas” * - recebe um dom, uma qualidade especial, conferido por uma banca de fadas.
Acredito na impressão digital da alma, berço das nossas características essenciais - um conjunto emocional a ser cultivado - nos detalhes que nos farão interagir com o mundo. A digital da alma, são os sentimentos que nos pertencem de maneira particular, no modo de olhar a vida, nos trejeitos – é também o nosso molho.

Eu, o exemplo mais eloqüente, estava predestinada já na maternidade a certas estranhezas e exageros, tanto no comportamento quanto na emoção. Induzida a nascer durante os sete meses incompletos - mais pela pressa do doutor do que pela minha vontade de estrear – um mau humor sisudo e um estrabismo grave me acompanharam desde o tumultuado início.

As brincadeiras normais da infância me levavam a um estado de tédio e ao refúgio nos livros. Passeios banais e encantadores tais como: zoológico, circo, piqueniques em Paquetá, Cristos e Bondinhos, me faziam oscilar entre a compaixão - pelos bichos engaiolados - a reflexão triste - diante da dura vida dos artistas – e a total exasperação, pois me parecia inútil esta recreação me levasse à felicidade.

Ainda que chegada a extremos de personalidade, pontuados por ataques e esquisitices, nunca conversei com formigas, tal qual minha colega de primário, a Sigrid. Era uma alemanzinha, de olhos fundos, muito pálida, que preenchia o recreio escolar em confabulações com suas amigas operárias, distraindo-se ao alimentá-las com pedacinhos triturados de folhas verdes. Quando algumas vezes quis entrar no clima juro, com a mão erguida, a minha sincera tentativa de adesão. Não deu.

Por equilíbrio, e absoluta necessidade de sobrevivência – considerando que meu gênio emburrado ficara famoso, restou-me o que as fadas chamariam de qualidade: uma incansável tolerância. Somou-se à facilidade de aturar chatos, situações difíceis e outros bichos estranhos, um vício que adquiri: uma vida profícua em pensamento. Bastava imaginar coisas que mesmo em pensamento encabulavam tamanho era o despropósito da situação. O surreal me atraia. O pensamento era a minha morada. Sentia-me detentora do poder de não ser eu, ser um outro, conhecido ou não, amigo, parente, vizinho...passei pela fase de me privar de algum sentido, fechava os olhos, como se nunca mais fosse enxergar coisa alguma e ficava a andar pela casa apenas sentindo a tudo, a todos, os caminhos do meu próprio lar, paredes, pessoas, móveis, a textura das coisas. Mortes e enterros, embora protegidos pela imaginação, eram lugar comum.

Contudo, era feliz, deste jeito torto, era feliz. Imagino que na banca da minha vez, lá no tal mundo esotérico, quando mamãe me entregou às Fadas na esperança do Dom e confiante na graça, a fadinha estivesse um pouco contraditória, momentaneamente confusa. O que no final das contas, conspirou a favor pois, com certeza, foi o Dom de ultima hora, aquele concedido no final do expediente sob o poder da criatividade, que me fez ser quem eu sou.

Minha mãe continua reclamando do meu gênio, volta e meia taciturno. Meu humor, este refinou-se com o tempo e à Fada apressada agradeço a ferramenta que me tem sido muito útil: o Dom de me adaptar.


*Os Dons das Fadas; in “O Spleen de Paris” – Charles Baudelaire

5 comentários:

cris braga disse...
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cris braga disse...

Só para humilhar você indica Baudelaire hahahahaha!
Belo texto ,Cris! Só que a fadinha(nas analogias que faço quando começo explicar o mapa astral que nos cabe, cito anjo)não tem muita culpa disso.A gente faz as escolhas!
Bom esses dons que a sua "fada" (suas escolhas) lhe deu - o da leitura e o da escrita, são DIVINOS.Você escreve muito bem! (essa mistura de virgem, com gêmeos no ascendente, Lua Leão e meio do céu em Áries - deu isso- uma pessoa especial).
Eu criança, já conversava com formigas e outras figuras que somente eu via e deu essa figura nem sempre bem compreedida hahahahahahahahahahahahaha!
De vez em quando tenho amigas que me escrevem que estão surpresas comigo!hahahahahahahahahahahaha!
beijocas, sucesso e escova progressiva!!!hahahahahahahahah

Cris disse...

Eu sei, eu bem sei, minha Maga, que os Dons podem ser fonte tanto da nossa felicidade quanto da nossa infelicidade; façamos bom proveito...beijos!

Anônimo disse...

Maravilhoso,Cristiane!!
Como sempre muito bem escrito e transparecendo mais uma vez essa inteligencia emocional imensa! Pois escrever bem,pra mim,não é só ter técnica e fazer (ou tentar fazer) coisas inovadoras,geniais.
É do simples da memória,ou do Criativo,fazer uma emoção pra quem lê.
E isso vc faz divinamente!
Bjs

virgínia além mar floresta vicamf / disse...

gostoso de ler, adorável conhecer uma menina em sua estranheza ante ao mundo, tbém com os livros e letras birnquei,entretanto na copa das grandes árvores sonhei com amigos inventados, encontrei-os mais tarde nos livros, continuam sendo os escritores meus prediletos,
abraços, parabéns Cristiane